Quiropraxia no Brasil

O texto a seguir é de autoria do Dr. Braghini Jr. e me foi enviado por ele há alguns anos. Tomei a liberdade de reproduzí-lo por considerá-lo bastante conciso. Assim como o Dr. Braghini devo minha paixão pela Quiropraxia ao querido e saudoso mestre Matheus de Souza. (CW)

A quiropraxia foi introduzida no Brasil em 1922, trazida por um pioneiro, o dr. William F. Fipps. O Dr. Fipps se estabeleceu no centro de São Paulo onde ficou por 26 anos. Neste período, ele não só atendeu pacientes, como ensinou sua técnica a alguns brasileiros. Além dele, outros quiropraxistas americanos, de alguma maneira atuaram no Brasil, mas sem registro oficial.

Em 1945, chega ao Brasil o dr. Henry Wilson Young, que assume o consultório do Dr. Fipps e depois se estabelece nos bairros de Higienópolis e Pinheiros, em São Paulo. A partir daí, começa o registro da história da quiropraxia no Brasil. Em 1955, Young atende em seu consultório um estudante de 15 anos de idade que apresentava uma forte dor nas costas. Com simples manipulações, o quiropraxista aliviou as dores do jovem Matheus de Souza, que empolgado, começa a se interessar pela prática, chegando mais tarde a estudá-la a fundo. O dr. Young, homem de personalidade forte, se estabelece como a principal figura da quiropraxia na época. Sob sua liderança, foi estabelecido um convênio com a University of Natural Healing Arts (hoje extinta), localizada em Denver, Colorado e a Associação de Renovação Biológica (ARB), de Curitiba, Paraná. Em 1958, tem início nas dependências da Escola Federal de Medicina, o primeiro curso de quiropraxia em Curitiba, Paraná.

Em 1961, sem aviso prévio ou explicação, a Escola de Medicina retira seu apoio e o curso só se mantém graças à intervenção do sr. Avelino Vieira, fundador do (antigo) Banco Bamerindus, hoje HSBC. Seu apoio financeiro mantém o curso até o final, em 1964. Em dezembro de 1964, o curso se encerra com 28 graduandos. Dentre estes, o dr. Manoel Matheus de Souza (aqui vai uma curiosidade, que comprova o que falei anteriormente sobre o GI Bill: muitos dos professores que vinham dos EUA para ministrar as aulas eram ex-combatentes da II Guerra Mundial). Sem apoio subseqüente, o curso não pode continuar e logo em seguida ao golpe militar de 1964, os próprios profissionais passaram a ser perseguidos pelas corporações médicas.

Até essa época, não havia uma denominação oficial da profissão no Brasil, e os profissionais se intitulavam chiropractors, nome original em inglês. Mas apesar dessas dificuldades iniciais, cerca de 300 profissionais, brasileiros e americanos, participaram da realização da primeira Convenção Nacional, em 1965. Nessa convenção, foi escolhido o termo Quiropatia para denominar a profissão. Neste mesmo ano, Matheus funda o IBRAQUI – Instituto Brasileiro de Quiropatia, como órgão de divulgação para o Brasil e países de língua portuguesa.

Mas a perseguição aos quiropraxistas aumentava. Em 1967, o dr. Matheus é obrigado a parar de trabalhar em Curitiba, começando assim sua peregrinação por várias cidades onde tentava se estabelecer profissionalmente: Marília/SP, Curitiba/PR e Campo Grande/MT. Em 1969, de volta a Curitiba, é obrigado a parar pela segunda vez, fato que se repete em 1971.

Em 1972 no auge da repressão, a sede do IBRAQUI e da ARB é invadida, e todos os registros e documentações pessoais são destruídos. Os quiropraxistas são presos e o dr. Matheus, junto com outros profissionais fica três dias desaparecido. No cárcere, os quiropraxistas são submetidos à tortura física e psicológica, e ao serem libertados, são aconselhados a abandonarem sua profissão. Alguns ainda tentam manter sua atuação profissional, e o próprio dr. Matheus trabalha clandestinamente durante os sete anos seguintes em várias cidades: Presidente Prudente, Florianópolis, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Segundo seu próprio relato: “Quando eu chegava numa cidade, começava a trabalhar sem problemas, mas em cerca de seis meses eu já estava conhecido. Aí não tinha mais jeito. Quando eu recebia uma intimação para comparecer à delegacia, arrumava minhas malas e saia da cidade.” Obviamente, os consultórios de quiropraxia vão sendo gradativamente desativados e vários profissionais abandonam a profissão ou emigram para a Europa e Estados Unidos.

Neste ponto, posso dar meu testemunho pessoal. Há alguns anos, atendi a um casal que era paciente do dr. Matheus nesta época. Segundo seu relato, eles nunca sabiam aonde seriam atendidos. A Suréia – esposa do Matheus, ligava e dizia: “Agora ele está atendendo no endereço tal”. E lá iam eles. Invariavelmente, era uma casa onde as janelas eram cobertas por grossas cortinas, de modo que ninguém pudesse ver o que acontecia lá dentro.

Em 1980, o dr. Matheus inicia trabalho clínico junto ao dr. Henry Young em seu consultório em São Paulo, sendo os dois únicos profissionais a atuar publicamente no Brasil. Como o dr. Young era norte-americano a perseguição recrudesceu, mas em fevereiro de 1982, com o seu falecimento o dr. Matheus de Souza assume o consultório.

Em 1983, recria o IBRAQUI e reinicia o trabalho de divulgação através de seminários e palestras, incluindo aulas de quiropraxia no curso de Pós-Graduação em Homeopatia da Associação Médica Paranaense de Homeopatia, que durou até 1987.

Mesmo com o arrefecimento da repressão, em 8 de agosto de 1985, Matheus é preso pela quinta vez, durante oito dias, e novamente os registros do IBRAQUI são destruídos. A alegação é a mesma, prática ilegal da medicina, mas diferentemente do passado, ele inicia uma importante batalha judicial. Em 1987, a sentença torna Matheus de Souza o primeiro brasileiro a praticar a profissão de quiropraxista apoiado numa decisão judicial. A sentença da Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo dizia num dos trechos:

“Toda atividade nova (no sentido de ser utilizada onde não é conhecida suficientemente), sempre foi objeto das mais acirradas críticas e coações: assim aconteceu em todo ramo da ciência, desde Copérnico até os alquimistas na Inquisição, e agora com os novos métodos de tratamento de doenças…”.

Em 1987, é criada a Editora Ibraqui, que publica o livro “Iniciação à Quiropatia”, de Manoel Matheus de Souza, que seria durante anos a única obra no Brasil a divulgar a ciência, a arte e a filosofia da quiropraxia. Em 1988, Matheus ajuda a formar a Associação Nacional de Quiropatia (ANQ).

Nessa época, chegam ao Brasil dois outros quiropraxistas: um em Porto Alegre, o dr. Marino Schuler, graduado no Cleveland College of Chiropractic, e outro no Rio de Janeiro, o dr. Gerald Klein, graduado na Palmer College of Chiropractic. Logo em seguida, o dr. Klein forma na cidade do Rio de Janeiro a Associação Brasileira de Quiropatia, que tem duração efêmera, desaparecendo após seu retorno aos EUA.

Em 1992, o termo quiropraxia é utilizado pela primeira vez, quando Matheus, Schuler, junto aos recém-chegados, Sira Borges (Palmer College), Conrad Spainhower (Palmer College) e Mitsuyoshi Nagaya (Shiokawa School – Japão), formam a Associação Brasileira de quiropraxia (ABQ). Apesar de ser o secretário-geral na ABQ, logo aparecem divergências que afastam o dr. Matheus do restante da ABQ até que em outubro de 1994 pede seu desligamento.  Até hoje, a ABQ é a única entidade reconhecida pela Federação Mundial de Quiropraxia, e só aceita como membros profissionais graduados em instituições de ensino reconhecidas pelo Conselho de Educação em Quiropraxia.

Os anos seguintes foram marcados por profunda divergência entre o dr. Matheus e a ABQ.  Matheus não concorda com o fechamento dos cursos livres que ele ministrava, já que a ABQ insiste em que a quiropraxia é uma profissão de nível superior, como no restante do mundo. Matheus volta a abrir a Associação Nacional de Quiropraxia (ANQ), congregando seus alunos e os profissionais sem formação universitária. Havia dúvidas, inclusive, sobre a formação do dr. Matheus, se seria reconhecida, ou não, internacionalmente.

O fato a se destacar é que a quiropraxia só se manteve viva no Brasil durante os anos 70 e 80 graças ao trabalho dedicado de Matheus de Souza. A chegada dos profissionais formados no exterior aumentava a cada dia e a abertura dos cursos universitários isolou Matheus cada vez mais.

A saída para ele foi se associar aos fisioterapeutas, numa tentativa de transformar a quiropraxia que ele ensinava numa espécie de especialização da profissão. Seu sócio na época, ligado à fisioterapia, o estimulou neste caminho. Hoje, há uma batalha jurídica internacional, envolvendo o Conselho Regional de Fisioterapia (CREFITO), a ABQ e a Federação Mundial de Quiropraxia, sobre se a quiropraxia deve ser regulamentada no Brasil como uma profissão distinta ou se deve ser considerada uma especialidade da fisioterapia. Esta batalha é única no mundo.

Outros eventos importantes aconteceram enquanto isso:

Em 1994, o Ministério do Trabalho inclui a profissão quiropraxia/quiropatia/quiroprática no CBO – Código Brasileiro de Ocupações.

Em 1998, tem início um curso de Habilitação Técnica em Quiropatia do SENAC, cuja primeira turma se formou em no final de 1999.

Também em 1998, tem início um curso de pós-graduação, ligado à faculdade de Fisioterapia da FEEVALE, em Novo Hamburgo/RS, cuja primeira turma se formou em abril de 2000.

Em janeiro de 2000, acontecem dois vestibulares e abrem-se duas turmas de graduação, na Faculdade Anhembi-Morumbi, em São Paulo, e na FEEVALE, em Novo Hamburgo. Hoje a ABQ já conta com 220 membros com formação universitária.

Em março de 2000, a quiropraxista Elza A. Castro lança o livro “Quiroprática (Chiropractic) – Um Manual de Ajustes do Esqueleto“.

Em 2001, o secretário-geral da Federação Mundial de Quiropraxia, David Chapman-Smith lança o livro “Quiropraxia – Uma Profissão na Área da Saúde”.

A abertura dos cursos de graduação faz do Brasil rota de passagem de profissionais internacionais, e tem sido freqüente a presença de estrangeiros. Livros têm sido publicados sob o patrocínio das Universidades. O Brasil entra definitivamente na era da moderna quiropraxia.

Vou abrir aqui um parêntese especial em homenagem ao dr. Matheus de Souza. Num belo dia, Matheus se preparava para ministrar mais um de seus cursos livres, num hotel no interior de São Paulo, que duraria a semana toda. De repente, ele se deu conta de que seu sócio havia desaparecido, e levou com ele toda a sua contabilidade, inclusive os valores já pagos pelos alunos. Matheus chama e polícia e descobre que, além deste baque financeiro, os impostos e contas não haviam sido pagos ao longo de vários anos.

Endividado, Matheus passa a trabalhar cada vez mais. Sua alma já não expressa a alegria que os amigos aprenderam a ver. Uma alma cansada, deságua num corpo cansado. Nos dias 5 e 6 de maio de 2007, Matheus viaja para Santa Catarina, para ministrar um curso. No dia 7 volta a trabalhar em seu consultório, mas não se sente bem. Resolve ir descansar em seu apartamento em Santos. No dia 8 de maio, pega seu carro para voltar a São Paulo. Na tarde deste dia, seu carro colide com a base de concreto de um dos túneis da rodovia dos Imigrantes. Não havia marca de frenagem. A equipe que atendeu ao acidente suspeita que ele teve um mal súbito. Seu corpo descansou. E a quiropraxia brasileira perdeu um de seus mais proeminentes líderes.

Eu tive a oportunidade de conhecer e trabalhar com o dr. Matheus de Souza. Ele foi meu mestre e devo a seus ensinamentos muito do que sei hoje. Foi ele que me estimulou a aprofundar os conceitos sobre os mecanismos de ação da quiropraxia. Este texto – na verdade um livro não publicado – é o resultado de sua inspiração. Expresso assim, minha profunda gratidão.
Carlos Braghini Jr.

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